quarta-feira, 8 de abril de 2009

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Não estás deprimido; estás distraído! (FACUNDO CABRAL)

Facundo Cabral é um cantor Argentino, nascido em 22 de maio de 1937 na cidade de Balcarce, província de Buenos Aires, Argentina. Em tenra idade seu pai deixou a casa deixando a mãe com três filhos, que emigraram para Tierra del Fuego no sul da Argentina.
Cabral teve uma infância dura e desprotegida, tornando-se um marginal, a ponto de ser internado em um reformatório. Em pouco tempo conseguiu escapar e, segundo conta, encontrou Deus nas palavras de Simeão, um velho vagabundo

Em 1970, ele gravou "No Soy De Aquí, Ni Soy De Allá" e seu nome fica conhecido em todo o mundo, gravando em nove idiomas e com cantores da estatura de Julio Iglesias, Pedro Vargas e Neil Diamond, entre outros.

Influenciado, no lado espiritual, por Jesus, Gandhi e Madre Teresa de Calcutá, na literatura por Borges e Walt Whitman, sua vida toma um rumo espiritual de observação constante em tudo o que acontece em seu redor, não se conformando o que vê, durante sua carreira como um cantor de Música Popular e, toma o caminho da crítica social, sem abandonar o seu habitual senso de humor.

Como um autor literário, foi convidado para a Feira Internacional do Livro, em Miami, onde conversou sobre seus livros, entre eles: “Conversaciones con Facundo Cabral”, “Mi Abuela y yo”, “Salmos”, “Borges y yo”, “Ayer soñé que podía y hoy puedo”, y el “Cuaderno de Facundo”.
Em reconhecimento do seu constante apelo à paz e amor, em 1996, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) o declarou "Mensageiro mundial da Paz”.
(Fonte: Facundo Cabral na Wikipedia)


"NO ESTÁS DEPRIMIDO; ESTÁS DISTRAÍDO" é sem dúvidada uma reflexão muito profunda e oportuna. O autor é Facundo Cabral e a voz é de Mariano Osorio, um locutor mexicano que trabalha em Stéreo Joya 93.7 do grupo da Radio Centro.
Vale a pena ganhar 7 minutos na escuta desta maravilhosa reflexão.


Não estás deprimido; estás distraído...
distraído em relação à vida que te preenche...
distraído em relação à vida que te rodeia:
Golfinhos, bosques, mares, montanhas, rios....

Não caias como caiu teu irmão que sofre por um único ser humano, quando no mundo existem seis mil milhões. Além de tudo, não é assim tão ruim viver só. Eu estou bem assim, decidindo a cada instante o que desejo fazer, e graças à solidão conheço-me... o que é algo fundamental para viver.

Não caias no que caiu teu pai, que se sente velho porque tem setenta anos, e esquece que Moisés comandou o Êxodo aos oitenta e Rubinstein interpretava Chopin com uma maestria aos noventa. Só para citar dois casos conhecidos.

Não estás deprimido; estás distraído... Por isso acreditas que perdeste algo, o que é impossível, porque tudo te foi dado. Não fizeste um só cabelo de tua cabeça, portanto não podes ser dono de nada. Além disso, a vida não te tira coisas... a vida te liberta de coisas. Te alivia para que voes mais alto, para que alcances a plenitude.
Do berço ao túmulo, vivemos numa escola, por isso, o que chamas de problemas são lições. Não perdeste ninguém, aquele que morre simplesmente está adiantado em relação a nós, porque para lá vamos todos. Além disso, o melhor dele, que é o amor,segue em teu coração.

Quem poderia dizer que Jesus está morto? Não existe a morte: existe mudança. E do outro lado te esperam pessoas maravilhosas: Gandhi, Michelangelo, Whitman, São Agostinho, Madre Teresa, tua avó e minha mãe que acreditava que a pobreza está mais próxima do amor, porque o dinheiro nos distrai com coisas demais, e nos machuca, porque nos torna desconfiados.

Faz apenas o que amas e serás feliz! Aquele que faz o que ama, está benditamente condenado ao sucesso, que chegará quando deve chegar, porque o que deve ser será, e chegará naturalmente. Não faças nada por obrigação nem por compromisso, apenas por amor. Então terás plenitude, e nessa plenitude tudo é possível. E sem esforço, porque és movido pela força natural da vida... a que me levantou, quando caiu o avião que levava minha mulher e minha filha; a que me manteve vivo, quando os médicos me deram três ou quatro meses de vida.

Deus te tornou responsável por um ser humano, e és tu mesmo. A ti deves fazer livre e feliz... depois poderás compartilhar a vida verdadeira com todos os outros. Lembra-te de Jesus: "Amarás ao próximo como a ti mesmo".
Reconcilia-te contigo, coloca-te frente ao espelho e pensa que esta criatura que estás vendo, é uma obra de Deus; e decide agora mesmo ser feliz, porque a felicidade é uma aquisição.

Aliás, a felicidade não é um direito, e sim um dever, porque se não fores feliz, estarás levando amargura para todos os que te amam. Um único homem que não possuiu nenhum talento nenhum valor para viver, mandou matar seis milhões de irmãos judeus.

Existem tantas coisas para experimentar, e a nossa passagem pela terra é tão curta, que sofrer é uma perda de tempo. Temos para gozar a neve no inverno e as flores na primavera, o chocolate de Perusa, a baguette francesa, os tacos mexicanos, o vinho chileno, os mares e os rios, o futebol dos brasileiros, As Mil e Uma Noites, a Divina Comédia, Quixote, Pedro Páramo, os boleros de Manzanero e as poesias de Whitman, as músicas de Mahler, Mozart, Chopin, Beethoven, as pinturas de Caravaggio, Rembrandt, Velázquez, Picasso e Tamayo, entre tantas maravilhas.

E se estás com câncer ou AIDS, podem acontecer duas coisas, e as duas são boas.
Se a doença ganha, te liberta do corpo que é cheio de moléstias: tenho fome, tenho frio, tenho sono, tenho vontades, tenho razão, tenho dúvidas...
E, se tu vences, serás mais humilde, mais agradecido, portanto, facilmente feliz. Livre do tremendo peso da culpa, da responsabilidade e da vaidade, disposto a viver cada instante profundamente.... como deve ser.

Não estás deprimido, estás desocupado.
Ajuda a criança que precisa de ti, essa criança que será sócia do teu filho. Aliás o serviço é uma felicidade segura como gozar a natureza e cuidar dela para aqueles que virão.
Dá sem medida e te darão sem medida. Ama até que te tornes o ser amado, mais ainda converte-te no mesmíssimo Amor . E não te deixes confundir por uns poucos homicidas e suicidas. O bem é maioria, porém, não se nota porque é silencioso; uma bomba faz mais barulho que uma carícia, porém, para cada bomba que destrói há milhões de carícias que alimentam a vida. Verdadeiramente vale a pena!

Se Deus possuísse uma geladeira, teria a tua foto pregada nela. Se ele possuísse uma carteira, tua foto estaria dentro dela. Ele te envia flores a cada primavera. Ele te envia um amanhecer a cada manhã. Cada vez que desejas falar, Ele te escuta. Ele poderia viver em qualquer ponto do Universo, porém escolheu o teu coração. Enfrenta-O, amigo, Ele está louco por ti!
Deus não te prometeu dias sem dor, riso sem tristeza, sol sem chuva, porém prometeu força para cada dia, consolo para as lágrimas e luz para o caminho. Quando a vida te apresenta mil razões para chorar, mostra que tens mil e uma razões para sorrir.
Não.... não estás deprimido; ... estás distraído!

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Guernica


Composition of Johann Sebastian Bach's Toccata in D minor BWV 565 and Pablo Picasso's "Guernica".

Guernica é mais do que um quadro; é o símbolo da crueldade e do horror da guerra... Ficou na História como o símbolo mais representativo do desastroso episódio da Guerra civil de Espanha; mas representa também a luta contra o facismo, a opressão e toda e qualquer forma de totalitarismo. Em Julho de 1936 dá-se um levantamento militar contra o regime instituído da República de Espanha. Encabeça esse levantamento o General Franco que é nomeado Chefe de Estado na zona controlada pelos militares. Esta situação degenera num conflito bélico que durará quase três anos, até Abril de 1939. As democracias europeias decidem bão intervir, mas os regimes facistas da Alemanha e Itália colaboram com os militares rebeldes, enquanto a Rússia se coloca do lado da república. O saldo da guerra cifrou-se em mais de um milhão de mortos e milhares de exilados e refugiados políticos. Muitos deles só regressaram a Espanha quarenta anos depois, com a queda do regime franquista.

O quadro de Picasso
"O que pensa que é um artista? Um idiota, que só tem olhos, quando pintor, só ouvidos, quando músico, ou apenas uma lira para todos os estados de alma, quando poeta, ou só músculos, quando lavrador? Pelo contrário! Ele é simultaneamente um ente político que vive constantemente com a consciência dos acontecimentos mundiais destruidores, ardentes ou alegres e que se forma completamente segundo a imagem destes. Como seria possível não ter interesse pelos outros homens e afastar-se numa indiferença de marfim de uma vida que se nos apresenta tão rica? Não, a pintura não foi inventada para decorar casas. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo." (Pablo Picasso, sobre Guernica.)
Conta-se que, quando os nazis ocuparam Paris na Segunda Guerra Mundial, um oficial alemão, olhando uma reprodução do quadro Guernica, perguntou a Picasso se fora ele que tinha feito aquilo. Picasso respondeu: "Não, foram vocês!"
De maneira muito estudada, Picasso divide o quadro em quatro partes iguais. A base da composição assenta sobre um triângulo com base muito alongada, onde se situam as figuras mais importantes: o cavalo, o guerreiro morto, a mulher agachada e a mulher que segura a luz. Fora do triângulo, as figuras colocadas de ambos os lados: touro e mãe com o filho morto (à esquerda) e a mulher em chamas (à direita) dão simetria e equilíbrio à composição. A cena está iluminada de forma dramática pelo olho-lâmpada e pelo clarão das chamas. Picasso utiliza aqui uma gama muto limitada de cores: apenas o branco e o negro juntamente com bastantes tonalidades de cinzento procurando ser fiel aos relatos da imprensa da época. O posicionamento das figuras dá a entender que o que sucede na cena se desenvolve da direita para a esquerda. Enquanto uma das figuras arde em chamas, outra entra no quadro arrastando-se na direcção do cavalo. Este, torce a cabeça na direcção dos restantes personagens.
(Cfr.: http://www.xardesvives.com/plastica/guernica/guernicafs.htm)


O quadro mais famoso de Pablo Picasso pode ser agora visitado online e em três dimensões. Um trabalho notável da artista nova-iorquina, Lena Gieseke.




A 4 de maio de 1939 o Presidente do "Ayuntamiento" de Guernica divulgou o seguinte comunicado a todo o povo de Espanha:
"Em pé, diante desde microfone, quero contar o que os meus olhos viram no lugar do que já foi Guernica, e tomo Deus como testemunha: Envergonhados pelo monstruoso crime que cometeram, os rebeldes apelam para a falsidade para camuflar, para negar a mais vil das proezas da História, a total e absoluta destruição da cidade de Guernica. Aquele dia fatal, 26 de abril, era dia de mercado e a cidade estava cheia de gente. Em Guernica havia milhares de camponeses de toda a vizinhança, numa atmosfera de camaradagem basca, e ninguém suspeitava de que uma tragédia se aproximava. Pouco depois das quatro da tarde, aviões jogaram nove bombas no centro da cidade. Procurávamos os feridos, quando mais aviões surgiram, jogando todo tipo de bombas, incendiárias e explosivas. As feras que pilotavam tais aviões, logo que avistavam nas ruas ou fora da cidade uma figura humana, focalizavam nela suas metralhadoras, semeando terror e morte, entre mulheres, crianças e velhos. Tal foi a tragédia de Guernica, cuja verdade, eu, prefeito da cidade, afirmo diante do mundo inteiro. A Milícia estacionada em Guernica, naquele dia, era exatamente a mesma que havia confraternizado todos esses meses com o povo de Guernica, ganhando sua afeição. Foi a primeira a prestar auxílio naqueles momentos terríveis. Não foi nossa milícia que ateou fogo a Guernica, e se o juramento de um alcaide cristão e basco tem algum valor, juro diante de Deus e da História que aviões alemães bombardearam cruelmente nossa cidade até riscá-la do mapa." Guernica foi ferida, mas não morrerá. Da árvore brotarão novas folhas verdes em toda primavera; seus filhos a ela retornarão; suas casas serão reconstruídas, suas igrejas escutarão novamente seus hinos e preces... Guernica, o símbolo de nossas liberdades nacionais, e o símbolo da ferocidade do fascismo internacional, não pode morrer." (Cfr.: História do Século 20, volume 4 - Abril Cultural)

Em jeito de conclusão, poderemos dizer que Guernica é um grande grito suspenso: desde o relincho do cavalo, ao alarido da mulher que olha para o céu, pasando pelo bramido feroz do touro, o terrível gemido da mãe que segura o filho morto nos braços... No meio deste estrondo atroz, o silêncio da flor que brota junto à espada do guerreiro convida à esperança, ou, se quisermos, segreda-nos que enquanto houver resistência haverá esperança.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Este mundo da injustiça globalizada

A Democracia foi sem dúvida uma das grandes conquistas da História da Humanidade, sobretudo a partir de Revolução Francesa. Mas não se terão convertido as ditas democracias em falsa bandeira defraldada aos ventos para narcotizar e oprimir o povo? Nunca como agora se falou tanto de democracia, direitos humanos, liberdade, justiça, paz, pão para todos... Apesar disso, o mundo, este nosso mundo globalizado, parece avançar em sentido contrário:
"continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica". (José Saramago)

Vale a pena ler e reflectir sobre estas palavras de José Saramago, pronunciadas na cerimónia de encerramento do Fórum Social Mundial, em 18 de Março de 2002.




Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido...

Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia.
Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações.
Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é.
É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas nos açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo a certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.

Quem sou eu

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Cultura do medo vira cultura da culpa. "Iniciando-se como inimigo externo, o mal insinua-se, sorrateiro, na interioridade do espírito. O pecado, tentação demoníca, já não precisa de figuras visíveis, nossos devaneios, sonhos mais secretos desejos cindem nosso ser e o mal chama-se apenas paixão da alma" (Marilena Chauí). Emprestamos nosso corpo e nosso espírito para que o diabo seja, restando-nos o medo de nós mesmos. O Inferno somos nós. (...) O medo é companheiro de secretos ódios...